Imprensa sob ataque: democracia em risco

Ataques de autoridades à imprensa revelam tensões e riscos à democracia.
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Ao longo da história republicana, o Brasil revela tanto sua democracia quanto suas fragilidades não apenas pelo que autoridades dizem, mas sobretudo pelas tentativas de silenciar vozes críticas, numa dinâmica que ressurge hoje com ataques à imprensa como sintoma da dificuldade de setores do poder em conviver com o escrutínio público. Trata-se de um movimento estrutural que busca deslegitimar o jornalismo para abrir espaço a projetos políticos que dependem da opacidade, cenário no qual figuras como Jair Bolsonaro e Guilherme Derrite não apenas insultam jornalistas, mas expõem engrenagens contemporâneas de um país onde disputas discursivas viram armas e a imprensa assume o papel paradoxal de adversária, por revelar fissuras incômodas ao poder, e de guardiã, por manter, mesmo sob fogo cruzado, uma das últimas barreiras democráticas contra a arbitrariedade.

Ao percorrer a história recente, identificar padrões e relacionar episódios a tendências políticas mais amplas, torna-se necessário entender não apenas o comportamento individual das autoridades, mas o ambiente político que torna esses gestos possíveis.

Poder vs. Imprensa

A relação entre autoridades públicas e imprensa no Brasil sempre esteve marcada por tensão, mas também por uma espécie de pacto implícito: o de que a crítica, ainda que incômoda, faz parte da vida democrática. Desde a redemocratização, o jornalismo desempenhou um papel central na vigilância do poder, seja denunciando esquemas de corrupção, revelando violações de direitos ou expondo estruturas de desigualdade. Esse papel, no entanto, nunca foi plenamente consensual entre governantes. A cada ciclo político, a imprensa foi tratada ora como adversária estratégica, ora como aliada instrumental, e em muitos casos como obstáculo para a construção de narrativas convenientes ao poder.

O que muda no presente, e que torna urgente revisitar esse percurso, é a intensidade e a regularidade com que autoridades transformaram o ataque público à imprensa em método político. Em 2020, por exemplo, a Federação Nacional dos Jornalistas registrou mais de 430 agressões contra profissionais e veículos, número que representou um aumento superior a 100% em relação ao ano anterior e marcou o nível mais alto desde o início do monitoramento. A escalada coincide com o avanço das tecnologias digitais, que facilitaram a circulação de campanhas de desinformação, e com a crise econômica que fragilizou o setor. O jornalismo, que deveria sustentar a ponte entre sociedade e Estado, passou a ser tratado por determinados grupos como alvo preferencial de hostilidade, não por suas falhas, que podem e devem ser discutidas, mas por sua capacidade de iluminar zonas sensíveis que o poder tenta manter ocultas.

Crise na relação entre poder e imprensa

A trajetória das relações entre Executivo e imprensa ajuda a entender os padrões atuais. Nas décadas de 1990 e 2000, presidentes como Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer expressavam críticas duras às coberturas, mas ainda reconheciam a legitimidade do papel jornalístico. Os conflitos existiam, mas raramente se convertiam em campanhas sistemáticas de deslegitimação.

O cenário muda a partir dos anos 2010, quando a polarização política se intensifica e a confiança no jornalismo começa a ser corroída por disputas digitais. Segundo análise da Federação Nacional dos Jornalistas com base em dados da RAIS e do Caged, o emprego formal nas funções jornalísticas atingiu seu auge em 2013, com mais de 60 mil vínculos, e acumulou uma retração de 18% nos dez anos seguintes, em meio a crises econômicas e transformações tecnológicas no setor. Essa retração, somada à ascensão de redes sociais como arenas de disputa de narrativas, cria um ambiente fértil para que autoridades utilizem a imprensa como bode expiatório de seus próprios fracassos ou como distração diante de crises políticas.

Crítica pública vs. ataque pessoal

A hostilidade explícita de autoridades à imprensa não surge do nada, ela emerge de uma lógica política que transforma a crítica, elemento natural da vida republicana, em ameaça existencial ao poder. Quando governantes passam a tratar perguntas incômodas como agressões e jornalistas como adversários, não estamos diante de um desvio pontual, mas de uma escolha estratégica. Nesse movimento, a relação entre Estado e sociedade se distorce. Em vez de prestar contas, autoridades buscam desautorizar quem fiscaliza e em vez de responder a questionamentos, preferem desviar a atenção por meio da personalização do conflito.

Nesse tipo de ambiente, o ataque não se dirige apenas ao profissional que formula a pergunta, mas ao próprio direito da sociedade de saber. O gesto político se mascara de irritação individual, embora cumpra uma função coletiva: desestimular o escrutínio público. A crítica, que deveria ser respondida com argumentos, passa a ser substituída por insultos, ironias, ameaças veladas e tentativas de ridicularização. E quando isso parte de figuras com poder institucional, o recado para a população é claro: questionar autoridade é um ato indesejável.

Episódios envolvendo Jair Bolsonaro e Guilherme Derrite

Durante o período em que ocupou a Presidência, Jair Bolsonaro fez da hostilidade à imprensa um elemento recorrente de sua comunicação pública. Em episódios registrados em transmissões e entrevistas, afirmou que determinados meios de comunicação não serviam para informar e atacou profissionais pelo simples fato de insistirem em questões incômodas. Em um momento que repercutiu nacionalmente, ridicularizou a jornalista Patrícia Campos Mello de maneira explícita diante de apoiadores. Em outras situações, referiu-se à imprensa como elemento que trabalharia contra seu governo. Esses gestos ajudaram a consolidar um ambiente de permanente tensão e legitimaram, entre seus seguidores, a ideia de que reportagens críticas eram parte de um complô.

Guilherme Derrite, Deputado Federal e ex-secretário da Segurança Pública de São Paulo, tornou-se um dos casos mais visíveis de autoridade que transforma tensão institucional em violência simbólica contra a imprensa. Em 2023, durante um evento com policiais e empresários do setor de armas, afirmou que parte da imprensa é "canalha" e chegou a dizer que trabalha a favor do crime ao criticar reportagens sobre operações na Baixada Santista. Em novembro de 2025, voltou a protagonizar confronto ao recusar-se a responder perguntas no Congresso e reagiu com hostilidade à insistência dos repórteres. Esses episódios revelam uma postura que substitui o debate público por intimidação e reforça entre seus apoiadores a ideia de que jornalistas devem ser enfrentados, não ouvidos.

Tanto em Bolsonaro quanto em Derrite, há diferenças de estilo, intensidade e impacto, mas a lógica geral é a mesma. Nos dois casos, perguntas sobre temas sensíveis foram tratadas como provocação, e o desconforto com a crítica tornou-se arma para deslegitimar os veículos de fiscalização. O resultado é a consolidação de conflitos, em que a autoridade política orienta sua base a descredibilizar o jornalismo, reduzindo o espaço para debates e ampliando a falta de transparência sobre suas próprias ações.

O projeto político por trás da hostilidade

A crítica à imprensa faz parte de qualquer democracia saudável. O problema surge quando autoridades transformam esse gesto em método para deslegitimar o jornalismo como instituição e, quando ataques deixam de responder a reportagens específicas e passam a integrar um projeto político de controle da narrativa, o objetivo deixa de ser o debate e passa a ser o silenciamento. Esse movimento procura decidir quem pode narrar a realidade e quem deve ser desacreditado quando formula perguntas incômodas.

Ao definir a imprensa como inimiga, além de ampliar tensões, autoridades incentivam a ideia de que apenas versões oficiais importam e que qualquer questionamento é tentativa de desestabilização. Isso gera medo nas redações, desgaste entre profissionais e modifica a percepção pública sobre o papel da crítica. Segundo o Relatório da Violência de 2024, da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), foram registrados 144 episódios de violência contra a atividade jornalística no Brasil, dos quais mais de 40% envolveram políticos, assessores ou apoiadores desses agentes públicos. Essa dinâmica traduz uma estratégia que enfraquece a crítica pública e protege práticas de governo que dependem da ausência de transparência.

A estratégia da cortina de fumaça

A agressividade de autoridades contra a imprensa diz menos sobre os jornalistas e mais sobre a forma como elas imaginam e moldam o espaço público. Atacar jornalistas não responde somente ao desejo de contestar uma reportagem, e sim à necessidade de controlar o fluxo de informações. Quando esse tipo de atitude se repete em diferentes governos, estados e esferas, revela-se um movimento mais amplo de redução da capacidade de vigilância social e fortalecimento do secretismo como método de gestão. A cortina de fumaça criada por esses confrontos direciona a energia política para o embate narrativo, afasta a população do conteúdo substantivo das críticas e permite que a autoridade se posicione como vítima de perseguição, enquanto questões centrais sobre políticas públicas, contratos, investigações ou resultados concretos ficam em segundo plano. No lugar do debate, instala-se uma disputa sobre intenções, e a transparência passa a ser tratada como ameaça.

Essa estratégia não se restringe a Jair Bolsonaro e Guilherme Derrite. Outros políticos também alimentam a erosão do espaço informacional. O ex-ministro Ricardo Salles acusou jornalistas de mentir ao ser questionado sobre sua política ambiental, e Eduardo Bolsonaro hostilizou repórteres e incentivou ataques contra profissionais identificados por ele como adversários. Em São Paulo Tarcísio de Freitas debochou de questionamentos sobre violência policial. O traço comum é o desconforto com o escrutínio público. Em vez de responder a críticas legítimas, autoridades deslocam o debate para disputas laterais e tratam o questionamento como ataque pessoal, reforçando um ambiente hostil ao jornalismo e empobrecendo a vida democrática.

Como o ataque à imprensa funciona como instrumento de ocultação

Autoridades que recorrem à desqualificação sistemática da imprensa utilizam uma estratégia eficaz para criar um corredor de sombra ao redor de suas ações. Quando um governante sugere que reportagens críticas não passam de invenções, a atenção da opinião pública se desloca rapidamente. O debate perde precisão e passa a girar em torno de quem está dizendo a verdade, e não sobre o conteúdo propriamente dito. Esse deslocamento funciona como barreira para o aprofundamento das investigações e enfraquece o valor político de perguntas que deveriam ser tratadas com naturalidade.

Governantes que se valem desse expediente esperam colher dois resultados. O primeiro é reduzir a credibilidade de jornalistas que investigam temas delicados, como corrupção, violência policial ou irregularidades administrativas. O segundo é criar um ambiente em que qualquer questionamento possa ser interpretado como parte de uma ofensiva política, o que reduz a disposição da sociedade para analisar fatos de maneira crítica. Quando a imprensa é empurrada ao papel de antagonista, o poder se beneficia da desinformação e do ruído. O custo recai sobre a democracia.

Quando o ataque vira método: padrão, frequência e contradições

A observação do comportamento de diversas autoridades nos últimos anos mostra que a hostilidade à imprensa deixou de ser gesto isolado e passou a compor a gramática cotidiana do poder. A repetição de ofensas, a desconfiança sistemática contra jornalistas e o uso das redes digitais para amplificar discursos agressivos transformaram esse padrão em método político, adotado sempre que o poder encontra vantagem em substituir explicações por ataques. Essa postura expressa uma mudança estrutural na forma como parte das elites interpreta o papel da mídia: jornalistas deixam de ser vistos como fiscalizadores legítimos e passam a ser tratados como obstáculos que ameaçam a autonomia das agendas governamentais, tendência presente tanto no bolsonarismo quanto em autoridades estaduais e parlamentares de diferentes partidos.

As manifestações dessa prática variam entre agressões diretas, ironias que sugerem má fé e estratégias mais sutis de erosão da confiança pública no jornalismo, todas convergindo para a criação de um ambiente em que a crítica se torna suspeita e a autoridade se apresenta como vítima. Embora Jair Bolsonaro e Guilherme Derrite tenham se destacado pela frontalidade dos confrontos com repórteres, outros líderes reproduzem mecanismos similares, como governadores que reagem a reportagens graves atacando veículos independentes, prefeitos que restringem a presença de jornalistas e parlamentares que ironizam perguntas em sessões públicas. O problema não está no conflito eventual, inerente à dinâmica democrática, mas na sua transformação em prática constante, que sugere que a imprensa deve se ajustar ao humor do poder ou enfrentar retaliações simbólicas.

Como as posturas se repetem e o que elas revelam sobre cada liderança

O padrão que se repete entre diferentes autoridades combina convergências e singularidades. Em figuras como Jair Bolsonaro, o ataque à imprensa se converteu em eixo de identidade política, mobilizando apoiadores ao transformar jornalistas em inimigos simbólicos e contornar mediações democráticas. Em Guilherme Derrite, a hostilidade surge como resposta defensiva diante de debates sobre segurança pública, funcionando como desvio de foco diante de questões estruturais e reforçando a imagem de autoridade inflexível. Em vários estados, secretários reagiram com irritação a perguntas sobre operações policiais controversas, e parlamentares hostilizaram repórteres em comissões para evitar constrangimentos. Esses episódios mostram que o método ultrapassa perfis individuais e se apoia na utilidade estratégica do conflito.

Quando autoridades respondem com agressividade à crítica, revelam que veem a imprensa menos como componente da arquitetura democrática e mais como ameaça à própria estabilidade política. Por isso, figuras de origens distintas reproduzem comportamentos semelhantes, usando ataques públicos tanto como blindagem quanto como demonstração de força. O esforço de desqualificar jornalistas diz menos sobre o jornalismo e mais sobre o receio de que a transparência desestabilize estruturas que preferem permanecer fora do alcance do escrutínio social.

Consequências sociais: medo, autocensura e erosão da confiança pública

Os ataques de autoridades à imprensa produzem efeitos duradouros e moldam um ambiente em que o jornalismo se torna atividade de risco. Cada gesto de hostilidade reforça a ideia de que a crítica pública pode gerar retaliações e pressiona profissionais, desgasta redações e limita a produção de informação de interesse coletivo. Organizações como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e a Repórteres Sem Fronteiras registram crescimento de episódios de intimidação, tentativas de constrangimento e campanhas digitais contra repórteres, o que estimula a autocensura, sobretudo em coberturas sensíveis como segurança pública, corrupção, conflitos fundiários e violações de direitos. Esse cenário não exige agressão física para surtir efeito; a ameaça simbólica já cria barreiras emocionais e profissionais que enfraquecem investigações importantes e reduzem a autonomia do jornalismo.

Os impactos se estendem à confiança do público e às desigualdades informacionais. Quando autoridades desqualificam reportagens de maneira sistemática, parte da sociedade incorpora essa desconfiança e o valor social da informação se fragiliza, abrindo espaço para a desinformação e para narrativas políticas que dispensam evidências. Esse vácuo informacional favorece discursos simplificados e afeta de forma ainda mais dura as comunidades vulneráveis, onde a cobertura depende de repórteres freelancers e comunicadores populares. A violência política contra jornalistas silencia temas essenciais como violência policial, impactos ambientais e desigualdade, ampliando as distâncias informacionais em um país que já convive com profundas assimetrias de acesso ao debate público.

O impacto sobre jornalistas, redações e cidadãos

O efeito imediato recai sobre profissionais que precisam atuar em campo. Repórteres são pressionados a rever pautas, a evitar perguntas que possam gerar constrangimento ou a redobrar cuidados para não se tornarem alvo de campanhas digitais. Em muitas redações, equipes passam a discutir protocolos de proteção, e o simples ato de realizar uma pergunta deixa de ser visto como rotina e passa a ser entendido como gesto de risco.

Nas redações, a repetição desses ataques produz desgaste emocional. Profissionais lidam com ofensas públicas, tentativas de minar credibilidade e, em alguns casos, ameaças diretas. O custo psicológico desse ambiente pode levar ao afastamento de jornalistas experientes e desestimular novos profissionais a ingressar na área, o que enfraquece o campo como um todo.

Para a sociedade, o impacto se expressa na redução do debate público qualificado. Quando o jornalismo perde espaço ou se retrai, políticas públicas deixam de ser acompanhadas de forma rigorosa, e a população passa a conviver com menos informação sobre decisões estatais que afetam sua vida cotidiana. O enfraquecimento da imprensa não é apenas perda simbólica. Ele altera o modo como a democracia funciona e restringe a capacidade do país de tomar decisões informadas.

O espelho que esses ataques devolvem à esquerda

Os episódios de hostilidade de autoridades contra a imprensa revelam conflitos internos do campo conservador, mas também provocam interrogações dentro da esquerda. A defesa da liberdade de imprensa, embora historicamente associada a setores progressistas, nem sempre esteve no centro das suas prioridades, especialmente em períodos de tensão com grupos empresariais de mídia. Ainda assim, ganhou força a compreensão de que criticar coberturas específicas não pode se transformar em deslegitimar o próprio jornalismo. A experiência recente mostrou que ataques sistemáticos à imprensa abrem caminho para práticas autoritárias que ultrapassam divergências pontuais e atingem a base da vida democrática.

Esse movimento levou setores progressistas a revisitar sua relação com o ecossistema informacional. O avanço da desinformação, a fragilidade econômica dos veículos tradicionais e o crescimento de projetos que dependem da opacidade reforçaram a necessidade de proteger o pluralismo e a integridade de repórteres que fiscalizam o poder. Mesmo diante de coberturas consideradas enviesadas, a esquerda passou a reconhecer que a crítica faz parte do jogo democrático, mas destruir a imprensa implica riscos que recaem sobre toda a sociedade. Esse aprendizado também evidencia a necessidade de coerência: governos progressistas, ao prometerem transparência, precisam saber lidar com críticas duras sem desqualificar vozes independentes. Nesse sentido, cada episódio de hostilidade promovido por autoridades conservadoras funciona como lembrete de que a defesa da imprensa deve atravessar todo o espectro político.

Como a defesa da imprensa se tornou bandeira democrática, mesmo diante de críticas históricas

O campo progressista transformou sua relação com a imprensa ao compreender que a disputa central não é sobre preferências editoriais nem sobre alinhamentos políticos, mas sobre a manutenção de um espaço público aberto, crítico e plural. A defesa da liberdade de imprensa tem sido reafirmada por organizações progressistas, pesquisadores e movimentos sociais que percebem a relevância de garantir que o jornalismo possa atuar sem intimidações. Relatórios de entidades como a Agência Pública, a Ponte Jornalismo e o Observatório da Ética Jornalística têm mostrado que o enfraquecimento da imprensa afeta sobretudo grupos vulneráveis, que dependem de reportagens independentes para denunciar abusos.

Essa ampliação de consciência tem levado a esquerda a adotar uma postura de vigilância constante contra discursos que pretendem reduzir a legitimidade da cobertura jornalística. A crítica permanece necessária e saudável, mas ela se separa do ataque destrutivo que compromete o direito coletivo de acessar informação. Ao assumir essa posição, a esquerda se coloca como guardiã de uma dimensão essencial da vida democrática e reconhece que a imprensa, com todos os seus limites, é parte estrutural da arquitetura institucional que permite que conflitos sociais sejam debatidos à luz do dia.

Políticas públicas, desigualdade informacional e democracia

Os ataques de autoridades à imprensa não podem ser entendidos como conflitos isolados, pois integram um ecossistema no qual políticas públicas, desigualdades sociais e disputas por hegemonia informacional se cruzam. O Brasil vive assimetrias profundas de acesso à informação, com grande parte da população dependendo de rádios comunitárias e comunicadores locais que operam com poucos recursos. Esse cenário cria vulnerabilidades exploradas por grupos políticos interessados em controlar a circulação de notícias. Quando autoridades atacam o jornalismo, esses efeitos se tornam mais graves: a erosão da credibilidade da imprensa atinge de modo desigual quem já tem menos acesso a fontes qualificadas, ampliando a exposição a boatos, conteúdos manipulados e discursos que substituem análise por fidelidade política. Assim, desigualdades informacionais se somam às desigualdades econômicas, raciais e territoriais que estruturam o país, limitando a capacidade de grandes parcelas da sociedade de acompanhar criticamente decisões que moldam sua vida.

Esse quadro exige políticas públicas capazes de fortalecer o jornalismo, ampliar o acesso à informação e reduzir disparidades territoriais e sociais. Experiências de financiamento público a veículos independentes, iniciativas de formação para comunicadores populares e programas de mídia-educação tornam-se fundamentais para aproximar produção noticiosa e comunidades. A regulação de plataformas digitais também entra nesse debate, já que esses ambientes se tornaram centrais na disputa por visibilidade e impactam diretamente o alcance do jornalismo. A hostilidade de autoridades à imprensa, portanto, não é apenas questão ética ou institucional, mas problema social que afeta direitos, participação política e a própria profundidade da democracia. Sem políticas públicas que enfrentem essas desigualdades, o ataque retórico a jornalistas continuará a encontrar terreno fértil.

O que o debate revela sobre a necessidade de regular plataformas, fortalecer jornalismo e ampliar acesso à informação

A discussão sobre ataques à imprensa evidencia a necessidade de políticas que protejam o ecossistema informacional do país. A regulação de plataformas digitais, defendida por pesquisadores e entidades da sociedade civil, é vista como fundamental para reduzir a força da desinformação e ampliar a visibilidade de conteúdos verificados, já que algoritmos seguem favorecendo discursos polarizadores que alimentam suspeitas contra o jornalismo. Ao mesmo tempo, fortalecer veículos independentes e comunicadores que atuam em territórios vulneráveis é estratégico para ampliar a pluralidade informacional. Iniciativas como Marco Zero Conteúdo, Alma Preta Jornalismo e Nós, Mulheres da Periferia demonstram que compreender o país em sua complexidade exige também ouvir quem produz informação a partir das margens.

Ampliar o acesso à informação depende ainda de uma política nacional de mídia educação que prepare cidadãos para interpretar conteúdos, verificar fontes e reconhecer discursos manipuladores. Em um ambiente marcado pela rápida propagação de mensagens que atacam o jornalismo, formar leitores críticos torna-se passo decisivo para a saúde democrática. Proteger a imprensa não é tarefa exclusiva das autoridades. É uma ação coletiva que envolve instituições, educadores, movimentos sociais e cidadãos dispostos a defender a centralidade do debate público informado.

Conclusão

A sucessão de ataques de autoridades à imprensa revela disputas que vão além das declarações e atingem o núcleo da vida democrática. Ao transformar jornalistas em alvos, figuras públicas tentam reorganizar a percepção coletiva sobre quem tem legitimidade para fiscalizar o poder e narrar os fatos de interesse social. Trata-se menos de divergências pontuais e mais da tentativa de restringir transparência e ampliar zonas de opacidade, criando um ambiente em que a crítica passa a ser tratada como afronta pessoal. Esse processo, expresso em episódios envolvendo Bolsonaro, Derrite e outras lideranças, expõe a fragilidade institucional que deveria proteger o direito à informação e evidencia como o método se repete em diferentes cenários políticos.

Diante disso, o país é convidado a refletir sobre o tipo de pacto democrático que deseja sustentar. A crítica à imprensa é saudável, mas a deslegitimação sistemática do jornalismo normaliza a violência simbólica e reduz a capacidade de questionar autoridades. Fortalecer um ecossistema informacional plural não depende apenas das redações, mas de um compromisso coletivo com políticas públicas, cultura democrática e defesa do direito à comunicação. A pergunta que permanece diz sobre o que a sociedade perde quando autoridades tratam jornalistas como inimigos e o que ela pode ganhar ao proteger a circulação livre de informação, condição que permite à luz alcançar até as contradições que preferimos evitar.

Referências consultadas:
Relatório FENAJ 2019 / Relatório FENAJ 2020 / FENAJ – Violência 2020 com Bolsonaro liderando ataques / Abraji – Bolsonaro e 60% dos ataques em 2019 / RSF – Um ano sombrio para a liberdade de imprensa / RSF – Perfil de Jair Bolsonaro / ABI – Derrite afronta a liberdade de imprensa / DCM – Derrite se revolta e recusa entrevista / Canal Meio – Registro da fala de Derrite / Agência Brasil – Ataques de 2019 / Agência Brasil – Violência segue alta em 2025 / Abraji – Violência grave aumentou em 2022 / RSF – Redes de ódio no Brasil FENAJ - Jornalismo perde 18% dos empregos

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